30 de outubro de 2011

Do varredor ao presidente.


Não gosto de gente que desdenha ou ironiza a doença dos outros. Achei péssimo as pessoas fazerem pouco caso da morte do Steve Jobs, como se fosse fácil definhar até a morte e ter que deixar tudo, famílias, amigos, trabalhos, sonhos. Doença não é piada. Não é fácil ficar doente. Só quem tem uma doença grave, ou um alguém próximo em uma situação assim, sabe como é difícil. Mas não acho que esse seja o caso desse movimento pedindo pro Lula ir pro SUS. Ninguém está fazendo piada, nem desejando que o Lula vá para o SUS para morrer. Também não acho que seja algo pessoal. Acho que o que as pessoas estão tentando sinalizar é que o sistema público de saúde está falido e que quem depende dele precisa de muita sorte pra sobreviver.

O Lula não é a primeira pessoa que descobriu um câncer logo no começo graças ao fato de ter acesso ao sistema privado de saúde. O mesmo aconteceu com a Dilma, com o Reinaldo Gianechinni e com muitos outros políticos, atores, etc. Mas essa, infelizmente, não é a realidade da maioria da população. População pobre que não tem dinheiro para pagar um tratamento no Sírio Libanês e precisa se humilhar para conseguir uma consulta. Pois o SUS é feito disso, humilhação atrás de humilhação. São meses para conseguir uma consulta, meses para fazer um exame e a única coisa que resta ao paciente é rezar para sobreviver o suficiente para começar a fazer o tratamento.

A verdade é que se o Lula dependesse do SUS, assim como a maioria da população, ele não começaria a quimioterapia na segunda. Talvez, nem na semana seguinte, ou no mês seguinte. Talvez ele só começaria o tratamento no ano que vem. Talvez ele morreria antes disso acontecer.

Eu falo isso por experiência própria. Alguns meses atrás, estava em acompanhamento no HC Unicamp, quando marcaram meu retorno para 6 (SEIS!) meses depois. Os médicos ainda tiveram a coragem de me dizer que se alguma coisa acontecesse, eu deveria voltar antes -  ou seja, alguma coisa poderia acontecer, mas mesmo assim eu teria que esperar 6 meses para ainda ter que fazer vários exames e, só então, começar o tratamento. Felizmente tenho dinheiro para pagar um convênio, mas meu azar foi tanto que todos os médicos em que ia, acabavam me encaminhando para algum especialista do SUS. Felizmente, encontrei uma médica verdadeiramente preocupada com seus pacientes e em um mês eu já estava fazendo o tratamento. Se não fosse por ela, se eu tivesse que esperar minha consulta no HC Unicamp, não faço ideia do que teria acontecido. Mas essa médica é uma exceção nos hospitais brasileiros. Eu tive sorte, mas muita gente não tem. Quem já pisou em um hospital público sabe como é lamentável ver pessoas extremamente doentes esperando meses por uma consulta, por um simples exame. Isso não deveria ser assim.

Não estou aqui dizendo que todos os problemas da saúde pública do país são culpa do Lula. Mas ele, quando era presidente, poderia ter feito alguma coisa para melhorar ou, ao menos, amenizar essa situação, mas não fez. Nenhum presidente ou Ministro da Saúde fez qualquer coisa para tornar mais digno e responsável um sistema do qual depende a vida da maioria da população brasileira. Também não desejo que o Lula vá para o SUS para sofrer e/ou morrer e ver como vida de pobre é difícil - até porque isso não faria diferença nenhuma.

A única coisa que eu desejo é que ninguém mais tenha que pagar para ser bem atendido e receber tratamento. Que ninguém mais seja mandando para casa para esperar 6 meses. Que ninguém mais tenha que dormir em maca em corredor de hospital. Que ninguém mais morra por descaso ou falta de tratamento. A única coisa que eu desejo é que algum dia a saúde pública do nosso país consiga atender com qualidade, rapidez e dignidade toda a população brasileira, do varredor de rua ao presidente.

4 de setembro de 2011

Zero à esquerda.


Esse post é sobre algo que sempre pensei: boa parte das pessoas tem coração de pedra. E toda essa bondade, filantropia e vontade de ajudar os outros é, quase sempre, fingimento. Falsidade. É só uma maneira de limpar a consciência e dizer, antes de dormir: bom, eu fiz a minha parte.

Há pouco tempo entrei em uma ONG que faz atividades recreativas e educativas em centros e ONGs que cuidam de crianças carentes. Na primeira atividade, meu companheiro era um menino de 11 anos. Em uma das atividades, eles deveriam escrever no papel um sonho que eles tinham para a comunidade. E esse menino de 11 anos não conseguiu escrever “campo de futebol”. E ele não era o único que (quase) não sabia escrever. Mas acho que ninguém se importou muito com isso. Ao final da manhã, todo mundo voltou pra casa feliz, achando que já tinha feito “a sua parte”. Eu voltei pra casa pensando que eu era a única idiota que tinha saído de lá pior do que chegou, porque, pra usar a palavra correta, não fizemos merda nenhuma. Porque nenhuma brincadeira vai fazer diferença na vida de um menino que não sabe escrever “campo de futebol”, que mal sabe escrever o próprio nome.

Essa semana meu avô passou 5 dias internados por puro descaso da médica que o acompanha há mais de 10 anos. Ele foi internado quarta de manhã, faria a cirurgia (para trocar a bateria do marcapasso) de manhã mesmo e à tarde já estaria em casa. Mas a médica preencheu a ficha incorretamente e agendou a cirurgia sem nem confirmar se o hospital tinha comprado a bateria nova. Eles não tinham comprado a bateria nova. Desculpa vai, desculpa vem e meu vô só foi operado ontem (sábado!) às 16h. A médica disse que no dia seguinte ela passaria no hospital até às 11h pra dar alta pro meu avô. Depois de milhões de telefonemas (e muitas caixas postais), ela só chegou ao hospital às 17h, quando nós já estávamos assinando o Termo de Responsabilidade para retirar meu avô de lá, de qualquer jeito. Ela disse que um tio dela tinha morrido. A gente fingiu que acreditou. Achei péssimo. Meu vô tem quase 90 anos, tem Parkinson, está super debilitado e ficou internado por 5 dias sem a menor necessidade. A gente sempre tem a doce ilusão de que uma pessoa decide ser médico para fazer o bem para os outros. Mas alguém que tem coragem de tratar com tanto descaso um velhinho tão doente, só está preocupado mesmo é com o salário que vai embolsar no fim do mês.

Eu não teria coragem de fazer isso, porque eu acabo me envolvendo demais com as pessoas. Acho que isso é mal de família. Uma vez meu tio chorou só de ouvir a história sobre uma família que nós ajudamos em um Natal. Levamos uma sexta básica e uma bola. Um dos meninos, que era doente e tinha problemas mentais, queria muito uma bola de Natal.

Mas a grande maioria das pessoas não é assim. Elas vão lá, fazem o que tem que fazer e pronto. Cada um faz a sua parte. E depois... é cada um com seus problemas. Nós só “fazemos a nossa parte” quando isso não nos ocupa muito tempo ou dinheiro, quando não saímos perdendo, quando não somos prejudicados, quando não precisamos nos esforçar muito ou nos envolver demais, quando não dá muito (ou nenhum) trabalho. A parte que nos cabe é sempre fácil, rápida, barata e indolor. A parte que nos cabe é sempre merda nenhuma, que não muda coisa alguma. A parte que nos cabe vale menos que um zero à esquerda.

23 de maio de 2011

Nóis num semô tatu


seu arnestu escutó na tv qui tem um tantu de genti recramanu di um tar di livru du méqui. arnestu num sabi u qui é essi tar de méqui, num sabe nem u qui é livru pra usá da sinceridadi. arnestu num foi pra iscola. num sabe lê nem iscrevê. é anarfabetu. num sabi nem fazê u “ó” sentadu na areia comu si diz pur aí. só ficô sabenu du aconticidu purque a tv fala i num é pricisu di lê.

eli ouviu a tv falá qui tem um tantu di gente falanu mar dessi tar di livro di dático qui insina os alunu das iscola a falá erradu. nu livro elis insina qui falá “nóis pega o peixe” num tá certo. mas num tá? arnestu num entendeu, purque quandu seus amigu vorta da pescaria, elis sempri diz “nóis pegô um tanto de peixe”. i num é? us tar acadêmicu di uma acadimia das letra falarum qui u certo mesmo é falá “nós pegamos o peixe”. arnesto achô essi jeitu di falá um tantu istranho i pensô qui essi povu da acadimia devi di sê mitido pur di mais.

u ministru da educaçaum dissi qui si nóis cuntinuá falanu erradu, nóis num passa in cuncurso, num entra na universidadi, nem arruma empregu. i quem dissi que nóis qué fazê cuncurso? eu já tô impregadu desdi mulequi. eu tamém cunheçu um bucadu de genti qui só fala essi tar di nóis qui tá erradu i tá todu mundu impregadu i vivu, graças a deus.

u livru di dático chama “Por uma vida melhor” i arnestu achô um tantu istranhu qui um livru cum nomi bunitu dessi fossi ensiná coisa errada pros otro. istranhô tamém qui a iscola fossi insiná coisa qui num é certa, num é pra iscola qui o povu vai pra aprendê a iscrevê as coisa que fala i pra aprendê a lê u que us otro iscreve?

nu finar, arnestu pensô qui é bom por di mais num sabê iscrevê i só falá tudu da boca pra fora. quando si iscrevi, todu mundu lê i todu u povu fica sabenu quem dissi u quê. quando si fala, u ventu leva as palavra i nem deus incontra o qui foi dito.

arnestu desligô a tv i pensô qui as vezes era baum dá uma ventania pelus lado da acadimia i la nas bera du ministeriu, pra levá imbora essas cunversa fiada di genti qui fala u qui num devi.


u português é nossu i noís fala du jeitu qui quisé.


E que levante a mão quem um dia já disse “semana que vem nós iremos em uma festa, convidar-lo-ei”. E que atire a primeira pedra quem nunca pediu “Dois pão” na padaria.

Segue uma ótima entrevista sobre o assunto, com o Prof. Ataliba Castilho: http://www.youtube.com/watch?v=DROHTF4iaiQ&feature=player_embedded


7 de abril de 2011

Monstros S.A.


Quando algum horror acontece, mídia e sociedade se unem para crucificar e rotular de monstro o assassino da história. Como se a vida fosse simples assim. Em um dia ensolarado de primavera, uma pessoa “normal e feliz” acorda e pensa: hoje eu vou virar um assassino, vou comprar uma arma e matar dezenas de crianças na escola da esquina. Afinal, tem gente que nasce com gene ruim mesmo. Enquanto alguns sonham em ser jogador de futebol, médico ou policial, tem menino que já nasce sonhando em ser atirador de escola.

Não é minha intenção defender um jovem perturbado que assassinou brutalmente dezenas de crianças, no entanto não adianta jogar a culpa de atitudes assim na má índole ou no gene ruim dos outros. Pessoas que tomam atitudes como essa estão no ápice de uma explosão causada, sobretudo, pela sociedade fútil, egoísta e superficial na qual vivemos e a qual ajudamos a construir, dia a dia. Em uma sociedade onde as pessoas se importam mais com a etiqueta do bolso de trás da calça do que com a vida dos outros, não é difícil imaginar porque a depressão será a epidemia do século.

A questão é que ninguém se importa com os outros. Você sabe que sua vizinha não tá bem, mas não faz nada pra ajudar. “Ah, a vida é dela. Cada um com seus problemas”. Aí ela é encontrada morta pelo marido, com um saco de plástico amarrado no pescoço. Você tem um colega de trabalho que é meio calado e estranho. Você até pensou em se aproximar, fazer amizade, às vezes ele precisa de companhia. “Ah, mas também ele fica sozinho porque quer né?”. E ele acaba se jogando do décimo andar. Você vê aquele colega de classe sendo zuado, maltratado pelos outros alunos, ele apanha e é humilhado todos os dias. Ele chora. E você não faz nada. “Problema dele, ninguém manda ser viadinho e não se defender”. Quem não conhece uma história de bullying na escola (ou na universidade!)? Ou até histórias piores. Conheço gente que era assediado pelo diretor da escola ou que foi abusado sexualmente por colegas em período de aula. A gente sabe de tudo, mas nunca faz nada. A vida não é nossa, não é da nossa conta. Mas um dia, aquele garoto-pancada cresce, entra na escola onde seu filho estuda e sai atirando. Mata seu filho. Aí, bom... agora o problema também é seu.

As pessoas acham que estão livres de serem monstros - é preciso ter coração ruim. Não, não é. Já vi pessoas muito amáveis e próximas terem ataques (por nervosismo, stress, etc) e se transformarem, ficarem agressivas, transtornadas. Mas essas pessoas procuraram ajuda, "se trataram", receberam apoio da família e dos amigos. Só que nem todo mundo tem a sorte de ter alguém pra ajudar e no mundo onde cada-um-cuida-do-seu, ninguém tem coragem de pedir ajuda. E vai segurando. Sofrendo sozinho.

A gente só se preocupa com o problema dos outros quando somos atingidos, direta ou indiretamente, por eles. E se isso nunca acontecer... ah, deixa pra lá. Enquanto continuarmos vivendo nossas vidas dando valor para coisas fúteis e ignorando o bem-estar (ou sofrimento) das pessoas, esse tipo de tragédia vai continuar se repetindo...


ps1: Os dois casos citados (da mulher que se suicidou com uma sacola de plástico e do jovem que se jogou do apto onde morava) aconteceram de verdade, com pessoas que eu conhecia.

ps2: Acho engraçado que até agora ninguém comentou nada (NADA) sobre o “cinegrafista-amador” que entrou na escola logo depois do massacre e que ao invés de ajudar a socorrer as vítimas, ligou o celular pra filmar tudo e vender para emissoras de TV. Nada a declarar.

14 de fevereiro de 2011

E se eu pudesse tirar uma única foto?


E se eu pudesse tirar uma única foto? Se não existissem câmeras digitais, ou se elas sequer tivessem sido inventadas. Já não há mais filmes fotográficos e só me resta espaço para uma única foto no último filme que comprei anos atrás.


Que foto me restaria nessa única última chance?

Lembro que da última vez que tirei foto dentro de casa, o flash falhou e a única coisa que se viu foi a chama da vela, bem lá no canto do quarto. Não apareceu mais nada, nem ninguém. Não se via as roupas no armário, o lençol branco, nem o menino em cima da cama. A foto da casa e da família se empretou e virou a foto da chama da vela.

A natureza também já me enganou pelo visor da câmera. Parece que planta não gosta de sair em foto. Ela se transforma, fica difusa, confusa, embaçada, distorcida, derretida. Parecia foto que a gente tira de dentro do carro andando e só sai o movimento. A árvore deixou de ser planta para virar uma árvore a 100km por hora. Ela parecia correr. Parecia competir com o cavalo pra ver quem chegava mais rápido na beira do rio. Mas o cavalo não passou dos 80km.

Foto de gente eu não gosto de tirar, porque eu gosto de foto espontânea, mas gente só faz pose. Finge que não vê a foto, mas dá pra notar que o pescoço está todo torcido só pra aparecer melhor. Ou então segura o garfo em frente da boca, finge que come, e nem percebe que quando o flash acende, a comida já caiu do garfo faz tempo. Tem gente que vira pro lado, disfarça, faz de conta que não viu a câmera, faz de conta que trabalha. E quem é que trabalha fazendo pose bonita? Trabalhar cansa, é pesado, não dá pra acreditar que aquela cara boa surgiu no meio do trabalho. E não adianta se esconder, ficar bem longe, que lá do meio do caminhão alguém vai ver o brilho da câmera e estragar a cena. Vai fazer pose, vai sorrir. Tira o dedo da boca menina. Não, não olha, faz de conta que eu não to aqui. Volta a jogar, eu quero tirar uma foto do jogo. Presta atenção na farinha, senão faz sujeira. Faz de conta que eu não tô aqui.

E se eu pudesse tirar uma única foto?


ps: Escrevi esse texto para uma das publicações do projeto de pesquisa Olhares Cotidianos.