19 de fevereiro de 2009

Um pouco de Saramago


Para aqueles que não sabem, José Saramago tem um blog (http://caderno.josesaramago.org).


O texto abaixo é um dos posts que ele publicou esse mês. Faço minhas as palavras dele e para colocá-los no clima do post...


Durante um daqueles almoços que reúnem a família,
um homem abre a boca "Porque eu já avisei, quando a gente casar,
ela saí do emprego. Porque mulher minha não trabalha".

O fato não ocorreu na década de 30 do último século,
mas sim no ano passado. E o casamento dos dois já foi marcado.


Maus tratos

By José Saramago

Sou em geral conhecido como pessimista. Ao contrário do que alguma vez possa ter parecido, dada a insistência com que afirmo o meu radical cepticismo sobre a possibilidade de qualquer melhoria efectiva e substancial da espécie dentro do que em tempos não muito distantes se chamou progresso moral, preferiria ser optimista, mesmo que fosse apenas por ainda conservar a esperança de que o sol, por ter nascido todos os dias até hoje, nasça também amanhã. Nascerá, mas lá chegará também o dia em que ele se acabe. O motivo destas reflexões de abertura é o mau trato conjugal ou paraconjugal, a insana perseguição da mulher pelo homem, seja ele marido, noivo ou amante. A mulher, historicamente submetida ao poder masculino, foi reduzida a algo sem mais préstimo que o de ser criada do homem e simples restauradora da sua força de trabalho, e, mesmo agora, quando a vemos por toda a parte, liberta de algumas ataduras, exercer actividades que a vaidade masculina presumia de exclusivas do varão, parece que não queremos dar-nos conta de que a esmagadora maioria das mulheres continua a viver num sistema de relações pouco menos que medievais. São espancadas, brutalizadas sexualmente, escravizadas por tradições, costumes e obrigações que elas não escolheram e que continuam a mantê-las submetidas à tirania masculina. E, quando chega a hora, matam-nas.

A escola finge ignorar esta realidade, o que não pode surpreender se pensarmos que a capacidade formativa do ensino se encontra reduzida ao zero absoluto. A família, lugar por excelência de todas as contradições, ninho perfeito de egoísmos, empresa em falência permanente, está a viver a mais grave crise de toda a sua história. Os Estados partem do exacto princípio de que todos teremos de morrer e de que as mulheres não poderiam ser excepção. Para algumas imaginações delirantes, morrer às mãos do esposo, do noivo ou do amante, a tiro ou à facada, talvez seja mesmo a maior prova de amor mútuo, ele matando, ela morrendo. Às negruras da mente humana tudo é possível.

Que fazer? Outros o saberão embora não o tenham dito. Uma vez que a delicada sociedade em que vivemos se escandalizaria com medidas de exclusão social permanente para este tipo de crimes, ao menos que se agravem até ao máximo as penas de prisão, excluindo decisivamente as reduções de pena por bom comportamento. Por bom comportamento, por favor, não me façam rir.

Fonte: http://caderno.josesaramago.org/2009/02/16/maus-tratos/

10 de fevereiro de 2009

Conheça - Patrícia Melo

Patrícia Melo é escritora, roteirista e dramaturga. Na literatura, escreve obras policiais e é conhecida por se dedicar a análise da mente de criminosos. Ela tem uma escrita dilacerante. Seus livros chocam, te machucam por dentro, porque você sabe que embora seja tudo ficção, há algumas esquinas uma história parecida, mas real, pode estar acontecendo.

Li dois de seus livros, Acqua Toffana e O Matador. No primeiro, Patrícia conta a história de dois estupradores e assassinos: uma história é contada sob o ponto de vista da vítima e a outra, do estuprador. Em O Matador, Patrícia conta a história Máiquel e nos mostra como um acontecimento banal e não-planejado pode transformar uma pessoa comum num assassino. O Matador foi transformado em filme, sob o título O Homem do Ano.

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Patrícia Melo nasceu em Assis – SP, em 1963 e é casada com o maestro John Neschling. Além de diversos livros, também escreveu dois trabalhos para a televisão (a minissérie Colonia Cecilia em 1989 e A Banqueira do Povo, em 1993), dois roteiros para o cinema (O Xangô de Baker Street e Bufo & Spallanzani, ambos em 2001) e algumas peças de teatro. Em 1999, a Time Magazine a incluiu entre os 50 “Latin American Leaders for the New Milennium.

PUBLICAÇÕES
Acqua Toffana (1994)
O Matador (1995)
Elogio da Mentira (1998)
Inferno (2000) – vencedor do Prêmio Jabuti
Valsa Negra (2003)
Mundo Perdido (2006)
Jonas, o Copromanta (2008)

"Se você quiser me matar, Máiquel, vai ter que ser pelas costas, ele disse.
Suel ficou de costas para mim e saiu gingando (...).
Dei o primeiro tiro (...) Dei outro tiro sem mirar e acertei a cabeça de Suel. Foi assim, as coisas aconteceram desse jeito. Ele foi a primeira pessoa que matei. Até isso acontecer, eu era apenas um garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube."
(trecho de O Matador)


9 de fevereiro de 2009

A pobreza é revoltante


Eu tinha decidido que a volta do blog (depois dessa pausa de quase um mês) seria com a apresentação de mais um escritor brasileiro. Mas aí, acabei mudando de idéia. Na verdade, não mudei muito. Eu ia escrever sobre a Patricia Melo e os livros dela falam sobre o tema desse post.


Esses dias eu percebi uma coisa que espanta a mim mesma. Eu percebi que, no fundo, eu tenho dó de criminosos. Digamos que eu me compadeça do destino desgraçado do qual, na maioria das vezes, eles não conseguem fugir.

Não, não tenho dó de serial killer, estuprador, torturador, gente que bota fogo no vizinho, joga a filha pela janela, mata a namorada, enfim, esses assassinos que matam por prazer (ou por loucura, sabe-se lá), psicopatas que se multiplicam a cada dia no Brasil. Também não tenho dó de filhinho de papai que opta pela criminalidade para fazer bonito para os amigos. Estou falando de gente que nasce na miséria e vira bandido.

Uma reportagem na TV me deixou chocada: um menino de 11 anos era preso por roubo, pela segunda vez. Era usuário de drogas pesadas e morava num barraco de 2 cômodos em uma favela. Ele ainda é uma criança, mas já é um criminoso. Já é odiado por muita gente, que acha que seu lugar é na cadeia. Eu não acho. Eu tenho dó. A sua vida ainda está no começo, mas seu futuro já foi determinado.

Eu acho que o que acontece é que eu me identifico mais com ele do que com os ricos que ficam por aí choramingando quando seu rolex que custa sei lá quanto é roubado. A criminalidade do país é, claro, uma coisa terrível, mas a desigualdade social é, para mim, mais pertubadora.

Uma outra reportagem, que vi ontem, chama atenção para o assunto. Na cidade de São Paulo, o luxo e a miséria vivem lado a lado: de um lado a favela de Paraisópolis, uma das maiores da cidade, do outro lado o bairro Morumbi, um dos bairros mais ricos de São Paulo. De um lado da rua, barracos que não valem R$10 mil reais. Do outro lado, casas de R$5 milhões e apartamentos com uma piscina por andar.

Quando um dos moradores do Morumbi é assaltado, com certeza, se diz injustiçado. Injustiça maior é a vida que levam as 80 mil pessoas que moram ao lado. Não estou dizendo que ir lá roubar aquilo que a pessoa comprou com o dinheiro do seu trabalho é correto. Mas ver a pobreza na rua debaixo e fechar os olhos também é cometer um ato de injustiça.

É fácil julgar a pessoas quando se tem tudo na vida, escola boa, carro do ano, roupa nova toda semana, viagem pro exterior, festa, lazer. Boa parte das pessoas não sabe o que é ser pobre, o que é passar fome, frio, não ter roupa para vestir, não poder ir para escola porque tem que ajudar os pais a sustentar os irmãos menores. Concordo que a pobreza não deve ser desculpa para uma vida cheia de crimes, nem todo pobre precisa ou tem que virar bandido.

Mas o que será que nós faríamos se estivéssemos do lado de lá da história? Ser pobre é ter uma vida repleta de fracassos e humilhações. Cheia de sonhos que nunca serão realizados. É ver as oportunidades passarem bem longe da sua porta. Se imagine morando numa barraco de madeira e vendo, do outro lado da rua, uma mansão com mais quartos que moradores. Deve doer. Deve dar ódio. A pobreza é revoltante. Ela é o alimento da criminalidade.