14 de fevereiro de 2011

E se eu pudesse tirar uma única foto?


E se eu pudesse tirar uma única foto? Se não existissem câmeras digitais, ou se elas sequer tivessem sido inventadas. Já não há mais filmes fotográficos e só me resta espaço para uma única foto no último filme que comprei anos atrás.


Que foto me restaria nessa única última chance?

Lembro que da última vez que tirei foto dentro de casa, o flash falhou e a única coisa que se viu foi a chama da vela, bem lá no canto do quarto. Não apareceu mais nada, nem ninguém. Não se via as roupas no armário, o lençol branco, nem o menino em cima da cama. A foto da casa e da família se empretou e virou a foto da chama da vela.

A natureza também já me enganou pelo visor da câmera. Parece que planta não gosta de sair em foto. Ela se transforma, fica difusa, confusa, embaçada, distorcida, derretida. Parecia foto que a gente tira de dentro do carro andando e só sai o movimento. A árvore deixou de ser planta para virar uma árvore a 100km por hora. Ela parecia correr. Parecia competir com o cavalo pra ver quem chegava mais rápido na beira do rio. Mas o cavalo não passou dos 80km.

Foto de gente eu não gosto de tirar, porque eu gosto de foto espontânea, mas gente só faz pose. Finge que não vê a foto, mas dá pra notar que o pescoço está todo torcido só pra aparecer melhor. Ou então segura o garfo em frente da boca, finge que come, e nem percebe que quando o flash acende, a comida já caiu do garfo faz tempo. Tem gente que vira pro lado, disfarça, faz de conta que não viu a câmera, faz de conta que trabalha. E quem é que trabalha fazendo pose bonita? Trabalhar cansa, é pesado, não dá pra acreditar que aquela cara boa surgiu no meio do trabalho. E não adianta se esconder, ficar bem longe, que lá do meio do caminhão alguém vai ver o brilho da câmera e estragar a cena. Vai fazer pose, vai sorrir. Tira o dedo da boca menina. Não, não olha, faz de conta que eu não to aqui. Volta a jogar, eu quero tirar uma foto do jogo. Presta atenção na farinha, senão faz sujeira. Faz de conta que eu não tô aqui.

E se eu pudesse tirar uma única foto?


ps: Escrevi esse texto para uma das publicações do projeto de pesquisa Olhares Cotidianos.

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