23 de abril de 2015

A greve continua

Não sou professora das escolas da rede pública do estado de São Paulo, mas estudei a minha vida inteira em uma delas, vi e vivi, por muitos anos, o total abandono das escolas estaduais do estado. Por esse motivo, na última sexta-feira dia 17 de abril, juntei-me aos professores em greve na manifestação que começou no vão do Masp, na avenida Paulista, e percorreu algumas ruas da cidade de São Paulo até a Praça da República, onde se encontra a Secretaria de Educação do Estado.

Às 12h20 da sexta-feira, encontrei alguns professores de Hortolândia que aguardavam o ônibus que nos levaria até São Paulo. Quando entrei no ônibus, sentei-me e um professor de português sentou-se ao meu lado. Fomos conversando, fiz várias perguntas para entender melhor a atual realidade das escolas públicas paulistas – afinal, já faz 13 anos que me formei no Ensino Médio e, nesses anos, imagino que muita coisa deve ter mudado. E mudou mesmo: para pior. Mas não foi isso que me chamou a atenção na nossa conversa. Ao longo do caminho até SP, esse professor foi me contando um pouco do seu trabalho, para mostrar que apesar de todas adversidades, ele se esforça para dar a melhor aula para seus alunos. Falou-me do seu projeto sobre fotojornalismo, quando trabalhou com os alunos a narrativa construída por imagens, a produção de legendas e a análise sintática; além de discutir temas importantes, como a diversidade religiosa. Depois me contou também sobre as aulas de intertextualidade, construídas a partir do vídeo da “Galinha preta pintadinha”. Ele me contava tudo com tanto entusiasmo, que fiquei com vontade de assistir a suas aulas. Fiquei pensando que ele e tantos outros professores tão competentes e empenhados merecem ser tratados com muito mais respeito e dignidade, eles não merecem as migalhas dadas pelo governo estadual.

Enquanto conversávamos, alguém passou dando lanche e refrigerante para todos nos ônibus – era Itubaína. Aquilo salvou minha tarde, já que eu não tinha tido tempo de almoçar antes de sair de casa. Logo depois, uma professora do comando de greve deu algumas informações, falando sobre a atual situação das reivindicações. Falou que a greve continuava crescendo e que o número de professores parados estava perto de 70% - apesar do governador Geraldo Alckmin insistir em dizer que apenas 6% dos professores aderiram à greve. Falou também sobre a invasão da Assembléia dos Deputados, na quarta-feira anterior, e sobre seu resultado positivo: tinham conseguido uma reunião com o secretário da Educação, que aconteceria às 11h do dia 23/04. Estavam todos esperançosos de que alguma negociação favorável fosse feita nessa reunião.

Por volta das 14h, chegamos em SP. Descemos em frente ao MASP, não tinha muita gente lá. Eu devo ter feito uma cara um pouco pessimista, porque o professor ao meu lado – um amigo que me arrumou uma vaga nesse ônibus para SP - me disse:

- Não se preocupe. No dia da primeira manifestação, chegamos aqui e também não tinha quase ninguém, mas o pessoal vai chegar. Quando estiver perto da hora de sairmos em caminhada, esta avenida estará cheia.

Fomos para o vão do MASP. Havia três “trios elétricos” parados na rua e muitos professores discursando em cima de um deles. Muitos professores carregavam faixas e cartazes. Havia profissionais de todas as idades: desde professores muitos novos, que com certeza mal saíram da faculdade, até professores já velhos de estrada. Lembro-me bem de duas senhorinhas japonesas, bem velhinhas. Uma delas segurava um cartaz com algumas informações sobre o baixo salário pago aos professores. A outra apenas observava tudo que acontecia ali. Parecia desacreditada de ter que sair de sua casa, em 2015, para lutar por um direito tão óbvio e essencial: educação gratuita e de qualidade para todos.

Por volta das 15h, começou a Assembleia e muitos dirigentes das regionais do sindicato dos professores foram convidados a discursar e propor suas pautas para votação. Foi no meio desses discursos, que a tropa de choque da Polícia Militar chegou e os policiais cercaram aquele espaço. Um pouco depois, alguns deles começaram a subir nos caminhões de som, numa tentativa clara de assédio moral. A presidente da Apeoesp, que falava na hora, pediu educadamente que eles se retirassem, pois não havia motivo para policiais de choque intervirem na manifestação, que era pacífica e organizada. Eles desceram. Mas minutos depois, posicionaram-se em frente aos carros, ainda mais próximos dos professores e dos estudantes que estavam ali. Mais uma vez, foram convidados a se retirar.

Estudantes. Talvez essa seja a maior diferença entre a atual greve dos professores e as anteriores: pela primeira vez, os estudantes entenderam que a greve também é um problema deles – aliás, eles são os principais prejudicados dessa história toda – e estão apoiando massivamente os professores. Havia muitos, muitos jovens estudantes ali. Não pude deixar de notar, claro, que a maioria deles era afrodescendente. Na minha frente, tinha um grupo deles. Enquanto os dirigentes discursavam – e o discurso já se prolongava há algum tempo – alguns garotos foram até o final do vão do MASP e pegaram muitas bexigas brancas que estavam sendo distribuídas, com o símbolo da Apeosp. Juntaram várias bexigas, formando grandes balões de bexigas, e começaram a brincar com elas. Um tentando roubar a bexiga do outro. Um desses grandes balões se soltou e subiu até o teto – na verdade até o piso – do MASP. Eu tirei uma foto. Nessa hora, a única coisa que consegui pensar é que são esses os jovens que a sociedade está querendo colocar atrás das grades, aos 16 anos: grandes marginais terríveis que brincam com bexigas brancas. Eles eram negros. De altíssima periculosidade.

Finalmente chegou a hora da votação, confesso que eu mesma já tinha começado a viajar e não conseguia mais prestar atenção no que estava sendo discutido. A votação foi rápida e, por volta das 16h30, começamos a nossa caminhada rumo à Praça da República, passando pela avenida 23 de março.  Enquanto os caminhões de som manobravam, nós atravessamos a rua e ficamos esperando a passeata passar por nós, para seguirmos atrás. Na linha de frente, estavam carros da Polícia Militar. Reparei que a maioria dos policiais eram negros. Teriam eles tido aulas com os professores que agora estavam naquela manifestação? Logo atrás vinha o primeiro caminhão de som e, à frente da passeata, estavam eles: um grupo de jovens estudantes carregando uma faixa que dizia: “O professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”. Olhamos para a avenida e ela estava tomada pelos professores e apoiadores da manifestação. Ver tanta gente sendo conduzida pelos estudantes foi um daqueles momentos em que restauramos um pouco da nossa fé na humanidade.

Começamos a andar e também começamos a petiscar bolachas e salgadinhos.

- A caminhada vai ser longa, bem longa. – disse meu amigo.

Caminhamos pela Paulista e não se via ninguém nas janelas dos prédios e poucos eram aqueles que paravam para registrar a manifestação com seus celulares ou demonstrar algum apoio ao que estava acontecendo ali. Se gritássemos “Vem pra rua”, parece que ninguém mais, além de nós mesmos, desceria para a avenida. Caminhamos um pouco e descemos a avenida Brigadeiro. Nesse ponto, a passeata começou a atrapalhar mais o trânsito, algumas ruas estavam fechadas e os ônibus tiveram que parar e esperar nossa passagem. Mas embora o incômodo fosse grande, não vi ninguém demonstrando qualquer sentimento contrário à manifestação. Ninguém xingava ou reclamava. Dentro dos ônibus, os muitos trabalhadores, que tentavam voltar para casa, apenas nos olhavam, alguns acenavam. Foi nessa rua que percebi à nossa frente um professor. Negro, sozinho. Incansável, ele balançava uma bandeira com o símbolo da Apeoesp. Às vezes, em meio aos discursos e gritos de guerra vindos dos caminhões de som, ouvia-se ao fundo um “Vai Curíntia” que saía de sua boca. Em um desses momentos, uma senhora que passava pela rua respondeu:

- Só Jesus Salva.

Continuamos andando e, então, o mundo ao nosso redor começou a mudar um pouco. Muitas pessoas saíram dos seus trabalhos e residências para ver de perto os professores passarem. Muitos tiravam fotos. Muitos pais levavam seus filhos para a janela e mostravam o que estava acontecendo. O que será que eles contavam às crianças? Do alto da sua janela, uma senhorinha acenava dando seu apoio. Depois de andarmos bastante, olhei para trás e ela continuava lá, acenando. Incansável. 

O professor que comandava o caminhão de som, disse que a PM tinha estimado o número de manifestantes em 3 mil. Olhamos para trás e a rua estava tomada pelos professores. Ouvimos alguém dizer que o terceiro caminhão de som ainda estava na Paulista. No meio da rua, avistamos muitos outros estudantes. Um deles carregava uma faixa que dizia: “Somos alunxs, mas 45 em uma sala não dá”.

45.

Já estávamos próximos à avenida 23 de maio. Enquanto caminhávamos pela ponte que passa sobre a avenida, alguém pediu para um grupo a nossa frente parar, pois queria tirar uma foto. Esse grupo carregava um caixão com um cartaz em cima: “Aqui jaz a educação”. Eu já tinha visto esse caixão antes, mas não consegui fotografá-lo, então corri para aproveitar essa oportunidade. Tirei a foto e um sentimento de luto muito forte me tomou – sentimento esse que revivo enquanto escrevo este texto. Eu chorei. Aquela imagem me fez lembrar que, naquele caixão, jaz muito mais que a educação. Ali jaz o futuro de milhares e milhares de jovens do estado de SP. O meu futuro também poderia ter sido enterrado ali. Lembrei-me dos problemas que enfrentei enquanto era estudante, dentre eles o medo de uma vida sem futuro. Senti aquela mesma angústia de novo. A angústia de quem olha pra frente e enxerga apenas um futuro sem escolhas, sem grandes perspectivas, um futuro fadado ao fracasso. Tudo isso embrulhado em um papel bonito chamado “Meritocracia”. E a ausência desse futuro não é silenciosa, ao contrário, ela grita, grita na nossa cabeça todos os dias: você não merece um futuro melhor! Mas eu merecia. Os jovens que estavam nas ruas naquela sexta-feira merecem também, assim como aqueles que ficaram em casa. Felizmente, eu tive a sorte de ser uma das alunas “mais ricas” da escola e meu pai, apesar de não ganhar muito, teve dinheiro para me pagar um cursinho pré-vestibular. Tive a sorte de esbarrar com pessoas maravilhosas, estranhos desconhecidos – hoje, amigos - que se dispuseram a me apoiar e iam na minha casa aos domingos à tarde para me ajudar a estudar para o vestibular. Tudo isso foi sorte, não foi mérito. Pois merecer, todos merecem. Mas infelizmente vivemos em um país onde a educação, direito de todos garantido pela Constituição Brasileira, ainda é regida pela sorte: sorte de berço, sorte de família, sorte financeira. Não tive como não pensar nos jovens da bexiga: terão eles a mesma sorte que eu?

Continuamos andando. Já estava anoitecendo quando entramos na avenida 23 de março e minhas pernas começavam a dar os primeiros sinais de cansaço. Fazia frio, mas estávamos quentes. Esse foi o trecho mais intenso da nossa caminhada. Os prédios ao redor da avenida estavam todos iluminados e víamos muitas pessoas na janela, acenando para a manifestação. Os carros que passavam do outro lado da pista – apenas uma estava sendo tomada pelos professores – também demonstravam seu apoio. Muitos motoristas gritavam, outros buzinavam. Parecia que, pela primeira vez, a briga pela educação tornava-se um problema de todos – ou, ao menos, de muitos. Nesse momento, avistei novamente aquele professor solitário. Ele tinha subido na mureta entre as duas pistas e, incansável, continuava balançado sua bandeira. 

A nossa frente, estava o túnel Papa João Paulo II e, logo acima dele, uma ponte toda iluminada. Havia muita gente na ponte, eles tiravam fotos e acenavam. Entramos no túnel. Somente nessa hora, pudemos ver a dimensão da manifestação. Andamos túnel adentro. Quando já tínhamos passado da metade, o professor no caminhão de som a nossa frente disse que um portal de notícias tinha acabado de divulgar que éramos mais de 60 mil manifestantes nas ruas. Ele, então, começou a puxar mais um grito de guerra e todos professores cantaram juntos.

“Eu sou professor,
com muito orgulho,
com muito amor”

O túnel, naquele momento, ampliou ainda mais o grito que já era forte. Parecia que éramos 1 milhão. Tentei me unir a eles, mas não consegui. Mais uma vez eu chorei. Mais uma vez pensei que aqueles professores merecem ser tratados com mais respeito e dignidade.

Quase no final do túnel, que fica em uma subida, olhei para trás e vi que o espaço estava tomado pelos professores e era impossível ver onde tudo aquilo terminava. Era muita gente. Acho que nunca uma greve de professores foi tão grande e tão forte. Nossa caminhada ainda não tinha terminado. Saímos do túnel e continuamos andando. Igual a uma criança em dia de viagem, perguntei:

- Ainda falta muito pra chegar na Praça da República?

Ainda faltavam alguns bons metros. Só chegamos ao nosso destino final depois das 18h30, foram mais de 2 horas de caminhada. Estávamos todos muito cansados, mas felizes. Enquanto esperávamos todos os professores do nosso ônibus chegar, decidi matar uma vontade: comer milho cozido, vendido por um senhor ambulante que empurrou seu carrinho de milho da avenida Paulista até ali. Ele não era o único ambulante na manifestação. Em terra onde educação é para poucos, a falta de serviço digno é realidade de muitos.

Em frente à Secretaria de Educação, muitos policiais faziam vigilância. Havia também um acampamento de professores que estavam dormindo ali há alguns dias – e ali ficariam até a reunião da próxima quinta. 

Nosso ônibus chegou, entramos. Um professor pediu para o motorista ligar o som bem alto e foram todos cantando muito animados de SP até Hortolândia. Estavam esperançosos, acreditavam que, na sexta-feira da semana seguinte, fariam o mesmo caminho vitoriosos, que algumas reivindicações seriam atendidas pelo secretário de educação na reunião de quinta, que a greve teria fim.  Como sempre, eu dormi antes mesmo de termos saído da marginal Tietê.

Hoje, quinta-feira dia 23 de abril, esses professores receberam a notícia de que o governador Geraldo Alckmin não tem nenhuma proposta vantajosa para fazer nesse momento, apenas em julho, e que as reivindicações dos professores não podem ser atendidas em sua totalidade. A greve continua.

#ForçaProfessores

  
 

 

 

 

 





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